sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Boataria - a que será que se destina?



Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
Cajuína, Caetano Veloso.

Com a graciosa oratória com que consagrou o seu reino, o dramaturgo paraibano Ariano Suassuna já externou a platéias diversas: _ Tem coisa melhor do que falar de um amigo pelas costas? A gente impossivelmente desatenta gargalha! E continua: _ Veja bem: o sujeito desafoga um infortúnio do espírito e ainda preserva o amigo... e se solta numa risada que ecoa...

Do alto de sua sabedoria, o belo velho Suassuna empolga quem lhe ouve com a autenticidade do mestre que fez e faz da vida sua melhor arma, sua grande arte. E para bem vivê-la, divide com galhardia o seu mundo em duas partes: o da gente que com ele concorda... e os equivocados... Risos...

Certamente que a graça do prosador remete a ranhuras tão comuns à vida cotidiana, egressas dos desencontros da convivência, fenômenos que tão bem provam a natureza das relações humanas, comunhão de aprendizes na escalada da vida. De quando em vez, senão todo dia, a gente faz isso. Na ânsia de um desabafo, solta o verbo sem importar-se com o resvalar em distorção ou não do real, com o impacto disso sobre a vida.

Frequentador assíduo de conversas em toda parte, não há quem não tenha sido cúmplice ou vítima de um deles. O boato cresce exótico feito bola de neve em situações de total descompromisso com as conseqüências. Mas também estoura como um balão que se espeta quando, raramente decerto, se dá ao trabalho de conferir-se antes de passar-se adiante. Quando sobrevive a qualquer checagem, vira “lêndea”.

O fenômeno se repete de modo muito parecido. O que ninguém sabe exatamente de onde saiu passa de boca em boca e, em questão de horas, se tanto, com arremates de crochês e bordados vira verdade verdadeira... “Eu não sei, só sei que foi assim”...

Uma frenética busca pela rede mundial de comunicação (olha uma fonte: www.4tons.com/0238.doc) atesta que se trata da mais antiga modalidade de troca social de informação. Antes da invenção da escrita, o boca a boca era o único canal de comunicação social.
A imprensa, capaz de proporcionar distinções entre boato e a verdade dos fatos, apurando e transmitindo informações, presumidamente confiáveis, dá a sua parcela de contribuição à geração e à difusão de boatos.

Boatus, do latim, significa “mugido, grito agudo”. Contam que na Antiga Roma os imperadores, certinhos de que a plebe, como eles, tanto gostava de um cochicho ao pé do ouvido quanto de uma luta de gladiadores, nomeavam delatores (do latim delatio) com a missão de mandar ver nos ouvidos pelas ruas.

Quando a vox populi sinalizava prejuízo à imagem do imperador, os delatores, eficientes agentes de um autêntico SNI da época, versados na arte da guerra psicológica e coisa e tal, lançavam boatos na contramão da história.

Há ditos que resistem aos mais contundentes golpes da realidade. Mas uma coisa todos têm em comum: sua fonte – primária – precisa ser “anônima”. Rastrear a sua origem é tarefa tanto mais difícil quanto mais complexa é a sociedade que lhe dá colo.

Pra ser eficaz, o maldito deve machucar a vítima ali onde dói mais. O bom mesmo tem cara, cor e cheiro de verdade, e, ainda por cima, o aval de gente tida como gente que sabe das coisas. Às vezes, é fato, o danado pode decorrer de um mal-entendido, uma conclusão precipitada do que se vê, lê ou escuta. Uma frase captada, um gesto interpretado, e pronto – faz brotar uma impressão que, levada às últimas conseqüências, pode envenenar a reputação de gente inocente.

O meio artístico é um campo fértil para a germinação de boatos, às vezes criados ou ampliados por publicações sensacionalistas. Não raros são os que se usam para fazer mal a gente pública. Rumores apelam comumente às questões de ordem moral ou emocional: estórias das quais, se pensa, ela não se conseguirá livrar ou só livrar-se-á quando a Inez já tarda morta. Como não há quem não goste de falar mal generalizadamente da gente pública, essas estórias circulam a jato. E proliferam feito cogumelo após a chuvarada.

Outro pulo na web e a gente encontra o relato de um francês que criou em Paris, em 1984, uma Fundação para o Estudo e a Informação sobre os Rumores. Rapidinho, Jean-Noël Kapferer montou um acervo de 10 mil boatos e escreveu Rumeurs (“Rumores”). O pescador de boatos tenta explicar como eles nascem e sobrevivem, apesar (ou por causa) da avalanche de informações produzidas diariamente pelos meios de comunicação.

A gente carrega pela vida afora uma bagagem de idéias, opiniões, imagens e crenças sobre o mundo à volta, a maioria adquirida simplesmente por ouvir dizer. Mas nem todo boato é boato, assim como nem toda notícia é verdadeira. Se o ditado também se sustenta como boato, parece certo é que todo boato tem alguma verdade a ensinar sobre o comportamento da gente e sobre o funcionamento da sociedade em que se vive.

Se existe, a que será que se destina? Certamente que a blasfêmia também atesta alguma admiração da gente que fala sobre a gente de que se fala. “Quem de mim fala por trás algum respeito me traz”. A gente é complexa! O que o contador Suassuna tantas vezes já provou com os causos relatados pelo matreiro fofoqueiro Chicó em “O auto da compadecida”.

O apelo à vulgaridade do recurso sistemático à boataria só evidencia uma radiografia de um mundo cada vez mais dominado pela insensibilidade, pela lei do mais forte, ou pela razão pura, sem sentimentos de beleza, amizade ou amor, usina empenhada que revela uma patologia crescente da comunicação social.

Por falar em comunicação, a 1ª Conferência de Comunicação da história do Brasil foi iniciada. Pela Municipal. E se tem uma coisa de que o país urgente precisa ajustar é a tal “liberdade de empresas”, porque a sua gente barganha a liberdade de opinião... plena! E a oportunidade em João Pessoa está posta para refletir o benefício e o malefício da indústria da boataria para o desenvolvimento da civilidade da gente.

De modo, gente amiga, que mais do que se diz, se fala, se propaga, sobretudo importa o que a gente faz, o que a gente desfaz, o que a gente refaz. Essencialmente importa o que a gente já fez. O que fundamentalmente implica o que a gente ainda será capaz de fazer. E fará.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009


Governança e governabilidade

Eu e os meus companheiros
Queremos cumplicidade
Pra brincar de liberdade
no terreiro da alegria
Chico César

A governabilidade tem sido expressão recorrente no cenário dos poderes públicos do país. Executivo, Legislativo e Judiciário investem sobre o tema. A sociedade organizada e os meios de comunicação social o replicam. Como a cada cabeça equivale uma sentença, o significado atribuído à palavra varia conforme se conjugam essas forças políticas no contexto da civilidade nacional. À capacidade de sustentabilidade da governança, convém aferir a sustentação pretendida.

Tentativas de reflexão são abundantes acerca das possíveis causas e dimensões de uma notória crise de credibilidade social da gestão pública brasileira. É o que se ouve e lê, correntemente: o descrédito – popular – que se lhe circunda; vide as mobilizações na web já não tão recentes para o voto nulo. Não surpreende que se trate de traço parental com a história da gestão pública, embora haja quem depreenda como coisa da marca oficial contemporânea. Um pouquinho de conhecimento da história do Brasil parece ser suficiente para isto.

A reforma do Estado e a redefinição de suas funções já se evidenciaram imprescindíveis a sua adaptação aos, necessariamente novos, desenhos políticos da legítima e complexa representação dos interesses sociais condutores e/ou afetados pelas políticas governamentais. Recursos à coalização de forças sociais e a aplicação de instrumentos de co-gestão revelam um viés estruturante no processo de implantação das políticas públicas elencadas a partir de um projeto de governo.

Contudo, agentes públicos ou cidadãos que compreendem necessária a formação estratégica de coalizões políticas para viabilizar uma governança, porque mantêm o foco na busca de eliminação de gestões desnorteadas quanto ao desenvolvimento sustentável, são firmes em abrir perspectivas que se empenhem em escapar de modelos neoliberais de gestão da economia pública e apostar em ordens de caráter socialista e socializante.

Parece armar-se uma retórica em torno da construção de um Estado que, sem negar a complexidade intrínseca de sua desafiadora relação com o capitalismo contemporâneo, atente para a premente necessidade de humanização da gestão pública, e, ainda que restrinja sua atuação na produção direta de bens e serviços, reforce sua função reguladora das políticas públicas, enfatize seu papel coordenador das agências governamentais nos três níveis da organização federativa e reoriente suas próprias funções de controle, fomentando gradualmente a co-responsabilização da sociedade através de mecanismos e instrumentos promotores da civilidade e de esforçada praticação democrática.

Uma vez retomado o crescimento econômico, é o desenvolvimento político - o desenvolvimento das instituições democráticas - a pauta da vez do Brasil. A tentativa até aqui de pensar governabilidade e crise de governabilidade, busca remeter à origem estrutural-funcionalista dos sistemas políticos brasileiros. E aí compreender a urgência da reforma política no Brasil.

Uma reflexão que bem serve às necessidades que a sociedade incrédula demanda. Se por um lado, engloba características operacionais do Estado - eficiência da máquina administrativa, novos formatos de gestão pública, mecanismos de regulação e controle -, por outro não se deve desviar de sua dimensão político-institucional de capacidade de liderança e de coordenação, desde as iniciativas por coalizões de sustentação do governo, processo decisório, tradição ou inovação da representação de interesses, relações entre os sistemas partidário/eleitoral, àquelas arquitetadas entre os Executivo/Legislativo e o grau de interação público/privado na definição e na condução do desenvolvimento sustentável, com empenhada atenção à postura autoral do Judiciário.

Senão, qual a perspectiva para que os partidos políticos constituam-se efetivamente em reais parceiros do desenvolvimento, cumprindo sua função agregadora dos interesses da sociedade e responsabilizando-se perante o eleitorado, demostrando-se capazes de tomar iniciativas de propor políticas necessárias ao desenvolvimento sustentável socioeconômico, político e cultural do país? Vide o predomínio de um constrangimento eleitoral sobre o comportamento de parlamentares no Brasil; sintoma especialmente relevante quanto aos custos sociais que lhe são inerentes. Constrangimentos que afetam o comportamento dos partidos governistas e dos de oposição, de manifestação bienal a cada eleição, afetando diretamente a sustentabilidade administrativa das políticas públicas.

O que se tenta refletir aqui é o papel de todos os governantes do Brasil, qualquer que seja sua convenção ideológica, e a recorrência de seu envolvimento em um padrão de interação conflituoso com os sistemas partidário/eleitoral, impondo-se um crucial gargalo sobre a capacidade governativa.

Cabe então arrematar com uma pergunta essencial: que democracia a gente é capaz de construir? Afinal, hoje, qual é a liberdade brasileira para falar sobre e praticar a democracia?

Ei, gente do Brasil, e o terreiro da utopia?

Eu e minhas companhias... Aiá...