terça-feira, 24 de novembro de 2009


Escuta cultural


Para ouvir basta abrir os poros (...)
Quem ousaria Dessas vozes duvida
(A primeira pedra, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Arnaldo Antunes)
Reabertura do Banguê. A avant-première que assalta o olho sensível é a Praça do Povo: quatro ou cinco carros acostam ao lado da rampa de subida ao cinema.
Observação registrada, rampa em escalada, outra acontecência: murmúrios revelam a curtição da pipoca com guaraná e resvalam a lugar conhecido: “_ pôxa! Quanto tempo já? É sempre assim. Esquecem o principal”.
O principal é o som, impossível de reter a platéia para o fim a que foi chamada.
A companhia do grupo conduz a outro plano. Repassagem pelos carros enfileirados. Diante de seus guardiães, a gente pára e pergunta, já querendo municiar-se para alertar à presidência da Fundação: “_ Por gentileza, de quem são esses carros?” E escuta a justificativa de bocas de santa plausibilidade: “_ é do governador e de sua segurança”.
Irrequieta como sempre, impossível não emitir a mensagem: “_ Digam ao governador pra prestar atenção à praça, que é do povo”. Nada assim que exija nenhum esforço cognitivo superior ao do senso comum.
Motivo de aperreio social desde seu nascedouro, agonizante em busca de sustentabilidade administrativa e financeira, aos galopes o Espaço da Cultura se transforma em qualquer coisa que lhe garanta a sobrevivência. Intrínseca expressão soberba da cultura da gente.
Por qualquer das frentes que se entra, o primeiro apelo visual da cultura é mercadológico. Comércio de roupas e outros estímulos ao consumo desenfreado se vão incorporando à complexa cultura da economia mundial que rouba avassaladoramente espaços de alimento da alma e gera uma profusão de nichos que dão comida ao corpo faminto de sentido e de identidade.
Como estacionamento privativo virou a mais rentável mercadoria das cidades contemporâneas, a gente precavê o espírito ante o choque de ver a cultura do Espaço sustentada por um “parque” de exposições de veículos.
Já não é curioso que, na história do país, gestores como a gente cheguem a carecer de instrução e desconheçam mesmo a razoável aplicabilidade pública da técnica e da ciência, mas a mínima educação doméstica e a sabedoria popular pregam há milênios que o exemplo é o melhor dos instrumentos de formação de valores de uma sociedade.
Pipoca, guaraná, pompa e tudo o mais: carros estacionados do lado da tela para assistir o cinema... que não é mudo, mas é ruidoso. Quem ousar duvidar das vozes ali presentes, basta abrir os poros. Abrir os poros para aprender a escutar.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Boataria - a que será que se destina?



Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
Cajuína, Caetano Veloso.

Com a graciosa oratória com que consagrou o seu reino, o dramaturgo paraibano Ariano Suassuna já externou a platéias diversas: _ Tem coisa melhor do que falar de um amigo pelas costas? A gente impossivelmente desatenta gargalha! E continua: _ Veja bem: o sujeito desafoga um infortúnio do espírito e ainda preserva o amigo... e se solta numa risada que ecoa...

Do alto de sua sabedoria, o belo velho Suassuna empolga quem lhe ouve com a autenticidade do mestre que fez e faz da vida sua melhor arma, sua grande arte. E para bem vivê-la, divide com galhardia o seu mundo em duas partes: o da gente que com ele concorda... e os equivocados... Risos...

Certamente que a graça do prosador remete a ranhuras tão comuns à vida cotidiana, egressas dos desencontros da convivência, fenômenos que tão bem provam a natureza das relações humanas, comunhão de aprendizes na escalada da vida. De quando em vez, senão todo dia, a gente faz isso. Na ânsia de um desabafo, solta o verbo sem importar-se com o resvalar em distorção ou não do real, com o impacto disso sobre a vida.

Frequentador assíduo de conversas em toda parte, não há quem não tenha sido cúmplice ou vítima de um deles. O boato cresce exótico feito bola de neve em situações de total descompromisso com as conseqüências. Mas também estoura como um balão que se espeta quando, raramente decerto, se dá ao trabalho de conferir-se antes de passar-se adiante. Quando sobrevive a qualquer checagem, vira “lêndea”.

O fenômeno se repete de modo muito parecido. O que ninguém sabe exatamente de onde saiu passa de boca em boca e, em questão de horas, se tanto, com arremates de crochês e bordados vira verdade verdadeira... “Eu não sei, só sei que foi assim”...

Uma frenética busca pela rede mundial de comunicação (olha uma fonte: www.4tons.com/0238.doc) atesta que se trata da mais antiga modalidade de troca social de informação. Antes da invenção da escrita, o boca a boca era o único canal de comunicação social.
A imprensa, capaz de proporcionar distinções entre boato e a verdade dos fatos, apurando e transmitindo informações, presumidamente confiáveis, dá a sua parcela de contribuição à geração e à difusão de boatos.

Boatus, do latim, significa “mugido, grito agudo”. Contam que na Antiga Roma os imperadores, certinhos de que a plebe, como eles, tanto gostava de um cochicho ao pé do ouvido quanto de uma luta de gladiadores, nomeavam delatores (do latim delatio) com a missão de mandar ver nos ouvidos pelas ruas.

Quando a vox populi sinalizava prejuízo à imagem do imperador, os delatores, eficientes agentes de um autêntico SNI da época, versados na arte da guerra psicológica e coisa e tal, lançavam boatos na contramão da história.

Há ditos que resistem aos mais contundentes golpes da realidade. Mas uma coisa todos têm em comum: sua fonte – primária – precisa ser “anônima”. Rastrear a sua origem é tarefa tanto mais difícil quanto mais complexa é a sociedade que lhe dá colo.

Pra ser eficaz, o maldito deve machucar a vítima ali onde dói mais. O bom mesmo tem cara, cor e cheiro de verdade, e, ainda por cima, o aval de gente tida como gente que sabe das coisas. Às vezes, é fato, o danado pode decorrer de um mal-entendido, uma conclusão precipitada do que se vê, lê ou escuta. Uma frase captada, um gesto interpretado, e pronto – faz brotar uma impressão que, levada às últimas conseqüências, pode envenenar a reputação de gente inocente.

O meio artístico é um campo fértil para a germinação de boatos, às vezes criados ou ampliados por publicações sensacionalistas. Não raros são os que se usam para fazer mal a gente pública. Rumores apelam comumente às questões de ordem moral ou emocional: estórias das quais, se pensa, ela não se conseguirá livrar ou só livrar-se-á quando a Inez já tarda morta. Como não há quem não goste de falar mal generalizadamente da gente pública, essas estórias circulam a jato. E proliferam feito cogumelo após a chuvarada.

Outro pulo na web e a gente encontra o relato de um francês que criou em Paris, em 1984, uma Fundação para o Estudo e a Informação sobre os Rumores. Rapidinho, Jean-Noël Kapferer montou um acervo de 10 mil boatos e escreveu Rumeurs (“Rumores”). O pescador de boatos tenta explicar como eles nascem e sobrevivem, apesar (ou por causa) da avalanche de informações produzidas diariamente pelos meios de comunicação.

A gente carrega pela vida afora uma bagagem de idéias, opiniões, imagens e crenças sobre o mundo à volta, a maioria adquirida simplesmente por ouvir dizer. Mas nem todo boato é boato, assim como nem toda notícia é verdadeira. Se o ditado também se sustenta como boato, parece certo é que todo boato tem alguma verdade a ensinar sobre o comportamento da gente e sobre o funcionamento da sociedade em que se vive.

Se existe, a que será que se destina? Certamente que a blasfêmia também atesta alguma admiração da gente que fala sobre a gente de que se fala. “Quem de mim fala por trás algum respeito me traz”. A gente é complexa! O que o contador Suassuna tantas vezes já provou com os causos relatados pelo matreiro fofoqueiro Chicó em “O auto da compadecida”.

O apelo à vulgaridade do recurso sistemático à boataria só evidencia uma radiografia de um mundo cada vez mais dominado pela insensibilidade, pela lei do mais forte, ou pela razão pura, sem sentimentos de beleza, amizade ou amor, usina empenhada que revela uma patologia crescente da comunicação social.

Por falar em comunicação, a 1ª Conferência de Comunicação da história do Brasil foi iniciada. Pela Municipal. E se tem uma coisa de que o país urgente precisa ajustar é a tal “liberdade de empresas”, porque a sua gente barganha a liberdade de opinião... plena! E a oportunidade em João Pessoa está posta para refletir o benefício e o malefício da indústria da boataria para o desenvolvimento da civilidade da gente.

De modo, gente amiga, que mais do que se diz, se fala, se propaga, sobretudo importa o que a gente faz, o que a gente desfaz, o que a gente refaz. Essencialmente importa o que a gente já fez. O que fundamentalmente implica o que a gente ainda será capaz de fazer. E fará.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009


Governança e governabilidade

Eu e os meus companheiros
Queremos cumplicidade
Pra brincar de liberdade
no terreiro da alegria
Chico César

A governabilidade tem sido expressão recorrente no cenário dos poderes públicos do país. Executivo, Legislativo e Judiciário investem sobre o tema. A sociedade organizada e os meios de comunicação social o replicam. Como a cada cabeça equivale uma sentença, o significado atribuído à palavra varia conforme se conjugam essas forças políticas no contexto da civilidade nacional. À capacidade de sustentabilidade da governança, convém aferir a sustentação pretendida.

Tentativas de reflexão são abundantes acerca das possíveis causas e dimensões de uma notória crise de credibilidade social da gestão pública brasileira. É o que se ouve e lê, correntemente: o descrédito – popular – que se lhe circunda; vide as mobilizações na web já não tão recentes para o voto nulo. Não surpreende que se trate de traço parental com a história da gestão pública, embora haja quem depreenda como coisa da marca oficial contemporânea. Um pouquinho de conhecimento da história do Brasil parece ser suficiente para isto.

A reforma do Estado e a redefinição de suas funções já se evidenciaram imprescindíveis a sua adaptação aos, necessariamente novos, desenhos políticos da legítima e complexa representação dos interesses sociais condutores e/ou afetados pelas políticas governamentais. Recursos à coalização de forças sociais e a aplicação de instrumentos de co-gestão revelam um viés estruturante no processo de implantação das políticas públicas elencadas a partir de um projeto de governo.

Contudo, agentes públicos ou cidadãos que compreendem necessária a formação estratégica de coalizões políticas para viabilizar uma governança, porque mantêm o foco na busca de eliminação de gestões desnorteadas quanto ao desenvolvimento sustentável, são firmes em abrir perspectivas que se empenhem em escapar de modelos neoliberais de gestão da economia pública e apostar em ordens de caráter socialista e socializante.

Parece armar-se uma retórica em torno da construção de um Estado que, sem negar a complexidade intrínseca de sua desafiadora relação com o capitalismo contemporâneo, atente para a premente necessidade de humanização da gestão pública, e, ainda que restrinja sua atuação na produção direta de bens e serviços, reforce sua função reguladora das políticas públicas, enfatize seu papel coordenador das agências governamentais nos três níveis da organização federativa e reoriente suas próprias funções de controle, fomentando gradualmente a co-responsabilização da sociedade através de mecanismos e instrumentos promotores da civilidade e de esforçada praticação democrática.

Uma vez retomado o crescimento econômico, é o desenvolvimento político - o desenvolvimento das instituições democráticas - a pauta da vez do Brasil. A tentativa até aqui de pensar governabilidade e crise de governabilidade, busca remeter à origem estrutural-funcionalista dos sistemas políticos brasileiros. E aí compreender a urgência da reforma política no Brasil.

Uma reflexão que bem serve às necessidades que a sociedade incrédula demanda. Se por um lado, engloba características operacionais do Estado - eficiência da máquina administrativa, novos formatos de gestão pública, mecanismos de regulação e controle -, por outro não se deve desviar de sua dimensão político-institucional de capacidade de liderança e de coordenação, desde as iniciativas por coalizões de sustentação do governo, processo decisório, tradição ou inovação da representação de interesses, relações entre os sistemas partidário/eleitoral, àquelas arquitetadas entre os Executivo/Legislativo e o grau de interação público/privado na definição e na condução do desenvolvimento sustentável, com empenhada atenção à postura autoral do Judiciário.

Senão, qual a perspectiva para que os partidos políticos constituam-se efetivamente em reais parceiros do desenvolvimento, cumprindo sua função agregadora dos interesses da sociedade e responsabilizando-se perante o eleitorado, demostrando-se capazes de tomar iniciativas de propor políticas necessárias ao desenvolvimento sustentável socioeconômico, político e cultural do país? Vide o predomínio de um constrangimento eleitoral sobre o comportamento de parlamentares no Brasil; sintoma especialmente relevante quanto aos custos sociais que lhe são inerentes. Constrangimentos que afetam o comportamento dos partidos governistas e dos de oposição, de manifestação bienal a cada eleição, afetando diretamente a sustentabilidade administrativa das políticas públicas.

O que se tenta refletir aqui é o papel de todos os governantes do Brasil, qualquer que seja sua convenção ideológica, e a recorrência de seu envolvimento em um padrão de interação conflituoso com os sistemas partidário/eleitoral, impondo-se um crucial gargalo sobre a capacidade governativa.

Cabe então arrematar com uma pergunta essencial: que democracia a gente é capaz de construir? Afinal, hoje, qual é a liberdade brasileira para falar sobre e praticar a democracia?

Ei, gente do Brasil, e o terreiro da utopia?

Eu e minhas companhias... Aiá...

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Faça amor, não faça guerra


E como começo de caminho
quero a unimultiplicidade
onde cada homem é sozinho
a casa da humanidade.
Tom Zé

Em meados do século 20, a cultura hippie mostrou sua face ao mundo. No auge de um verão de São Francisco (EUA), pessoas de todos os cantos e cores celebraram o desejo de igualdade. A flor, o símbolo mais marcante, aposentou a tesoura de cabelos de mulheres e homens. Pés desnudos em sandálias sob túnicas coloridas bailaram pelas ruas da cidade, propagando a paz, o amor e a tolerância em comunhão com a Mãe Natureza.

A motivação – ainda hoje por alguns perseguida –, as injustiças, desigualdades e contradições da sociedade americana, provinha sobretudo de uma juventude, rica e escolarizada, incomodada com o poder econômico-militar. Jovens que se desprendiam do conforto dos lares maternos, rumando a uma vida partilhada em cidades ou comunas rurais. Queriam apenas paz, para si e para o mundo. Opunham-se a todas as guerras, incluindo a que o seu próprio país travava. Defendiam o amor sem limites, a livre atividade sexual.

A música pop, com as suas baladas, e o rock e o seu frenesi, eram um poderoso meio de expressão de sua filosofia. Composta sob o efeito de drogas, ouvida em igual circunstância, criam libertar suas mentes. O desenho "psicodélico" de cartazes e camisetas desalinhava letras e imagens, reproduzindo a mensagem viva no sangue sob o efeito do êxtase.

Tal utopia espalhou saldos pelo planeta. O amor aquecendo ideais e alguns outros se tentando firmar ainda hoje como recurso singular a tolerar a diversidade da vida. A equidade de gênero, de etnia, de orientação sexual, o jeito alternativo de viver, a prática da respiração, meditação e yoga, alimentação saudável e plena imersão na irmandade da Mãe Terra.

Desafio premente da sociabilidade contemporânea: a condição humana. Essa, corriqueiramente atropelada pelo vagão da disritmia da sensibilidade, infere o grau de impacto da subjetividade na gestão de qualquer ordem ou esfera. Tema que, via de regra, supõe-se superado à senil maturidade do processo civilizatório, encenada conforme os papéis desempenhados no teatro da história.

Não é mero propósito deste devaneio atiçar o regime da oficialidade brasileira. Essencial é provocar a brasílica social: em que medida se cobra dos políticos aquilo que se pratica corriqueiramente. Valores que a ação cotidiana - doméstica, do trabalho, do lazer, das relações amorosas e familiares - reproduz assim... um dia após o outro. Hábitos havidos por comunhão, já que no Brasil a desonestidade é inclusive evocada como matriz conceitual de sua fundação: _ Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo o mundo rouba, dialogam Ana e Lucinda.

Se cada pessoa, ao vislumbrar nichos de transformação social, neles investisse sua energia e força, decerto que lemas como “Olho por olho, dente por dente”, “Bateu, levou”, nada de deixar de levar alguma vantagem pra casa – vide a lei de Gerson, “a melhor defesa é sempre o ataque”... essas velhas máximas seriam ainda contemporâneas do terceiro milênio...

Entendem algumas pessoas, ou entendiam, que não se faz transformação social sem revolução armada – para o Brasil, e um tanto de outros países, dura memória cravada em camadas da pele. Outras se utilizam, ao menos sumariamente, de cinco comportamentos: se conformam e silenciam; as que não se resignam e expelem indignação aos quatro ventos, existe ainda quem se aquiete mas, em tendo chance, tira proveito, e aquelas que vão às ruas ou aos gabinetes e põem a cara à tapa.

Também há quem silencie, se vai transformando dia-a-dia: dança em círculos, medita, respira profundamente, se empenha em praticar o que prega e deseja que a vida seja. Diante da expectativa de mudar a conjuntura da realidade através do outro, investe em si mesma. Expande o próprio espírito, se recicla, se transmuta e reverbera na energia vital, com a força de uma gota de água salgada do Atlântico, buscando o amor e evitando a guerra. Crê, é o que se ouve dessa gente, que “tempos difíceis existem pra aperfeiçoar o aprendiz”, sem se dispor, como Lucinda, a quebrar o nariz com a mentira de maus brasileiros.

As insondáveis constituições da alma e da espiritualidade certamente não configuram temas para agendas oficiais. Mas, atitude e postura está sob o poder de qualquer um. Tom Zé aposta na “unimultiplicidade”, a casa da humanidade. Carolina e Jorge replicam: já que não dá pra mudar o começo, se a gente quiser, a gente muda o final. Vigília e auto-vigília todo dia... e a gente muda o Brasil!

* “Make love, not war” - palavra de ordem do movimento Hippie.
Pressa & paciência

Eu não sou dono do mundo,
Mas tenho culpa porque sou filho do dono.
Zezinho Barros

As polaridades fazem parte da história da humanidade. Opostos se alternam a todo tempo, impelindo à compreensão de que a razão carece de contraponto, impõe uma visão dualista da existência. Positivo, negativo. Certo, errado. Preto, branco. Azul, encarnado. Verdade, mentira. Direita, esquerda.

Ah, mas opostos também se alternam o tempo todo confundindo o senso comum acerca das muitas verdades de que a realidade é feita, e de que a razão exige a arte do diálogo, ainda que a tese ante seu contrário conquiste um curioso consenso nem sempre dialético.

Muito cedo, o conceito de lateralidade é introduzido na percepção humana. Logo na infância, a escola introduz exercícios para aferir o grau de discernimento mental das pessoas pequeninas através do funcionamento de seus dois hemisférios cerebrais.

Como mais uma evidente demonstração da força da natureza, constata-se que a organização do cérebro em dois lados, direito e esquerdo, implica a necessária simultaneidade da ação bipolar para a compreensão global da vida. A diferença é a base da comunhão. Toda a manifestação sensorial perpassa os acontecimentos motores do lado oposto do corpo e do espaço. Sem desdenhar do senhor da razão, o tempo, essa quarta dimensão da visão do mundo e os dividendos que do seu transcurso se maturam, o indivíduo e a coletividade.

A abordagem é esquemática, reducionista por força do espaço de expressão e da pretensão de uma interpretação do instante fugidio. A intenção, contudo, é contribuir para avistar as luzes que repercutem as diferenças humanas no jogo da vida social. De que maneira cada cérebro ora se apóia mais nas capacidades do hemisfério esquerdo – em que a análise, o raciocínio e a lógica preponderam –; ora se fia no hemisfério direito, valorizando a intuição, a paixão, a visão sumária, a imaginação.

Por várias vezes, um desenho de dois burros amarrados a uma mesma corda instintivamente buscando saciar a fome e comer seu monte de feno, cada qual em uma de suas extremidades a puxar a corda para o seu lado, foi utilizada em sessões de capacitação de pessoal nas empresas. A lembrança reconstitui a representação de uma lamparina, a que uma das partes é presenteada, garantindo-lhe percepção e ainda poder de convencimento a outra de que comendo juntas, de cada vez um monte de feno, o cenário é contextualizado: esforços conjugados, força-tarefa concretizada. Uma experiência simbólica para a fina flor da sensibilidade de, certamente, visionários dos pontos de fuga não comumente observáveis na linha do horizonte.

A experiência recente de jovens agentes públicos, sensíveis aprendizes da vida em busca de desenvolvimento para toda gente, permite observar quanta prudência uma sociedade, por vezes comodamente incauta, espera de gestores delegados e neles projeta a salvação da pátria. O enigma da política certamente enche os olhos das ruas de impressões miraculosas.

Curiosamente, a perfeição humana, a começar dos distúrbios inerentes da lateridade, se inviabiliza diante da Mãe Natureza. Felizmente. Se a vida perfeita fosse, o que seria mesmo viver? Mas é em busca da eliminação dos defeitos da realidade social que o discurso da cobrança corre. E tem que correr mesmo. E compreender-se parte e também fazer a sua.

Desde que o mundo é mundo, evolução e retrocesso se abraçam e se rejeitam em movimentos cíclicos. E o futuro? O futuro, a gente tenta pilotar. Porque ele chega. Chega sem tempo nem piedade e, sem pedir licença a Toquinho, muda a nossa vida e depois convida a rir ou chorar.

A história da construção do futuro é a história da construção do passado e da desenfreada busca por felicidade que a humanidade carrega ao longo do processo civilizatório. Cientistas ensimesmados, questionam: _como a agência do desenvolvimento econômico não se dá o desafio de encontrar saídas para a superação do vazio de um prato de comida? E, ainda assim, há humanidade que fecha os olhos pra não ver. Por amor à vida, Zezinho Barros pede a Flávio José que repita, a todo instante, e FJ replica: “Boi com sede bebe lama. Barriga seca não dá sono... Desigualdade rima com hipocrisia. Não tem verso nem poesia que transforme o cantador. A natureza na fumaça se mistura, morre a criatura e o planeta sente a dor”.

É que o processo civilizatório é a cara da gente. O bom e o mal é a gente e a gente pensa que não é com a gente. A gente é avanço. A gente é retrocesso. Agente é toda gente: governo e sociedade. Cresce a fome. Cresce o poder?! E a pressa para eliminar da vida o vazio de comida?

Haja paciência para compreender o jogo das polaridades humanas como parte da caminhada!

A transformação social exige pressa. Sem dúvida, a miséria pede extinção. Mas a condição humana impacta as relações sociais através do cotidiano. O que se dirá de cada maturidade conjugada a outra, e a outra, a mais outra...

Paciência? “O diário desse mundo tá na cara.”
O bochicho de Cem Réis

A cidade não pára,
a cidade só cresce
O de cima sobe
e o de baixo desce.
Chico Science

Assim já era o antigo lugar: cidadania ativa em tempo real. Se antecipando à internet, ali no Ponto de Cem Réis que precede a segunda década do século 20 a notícia mais fresca se anunciava num instante entre os passantes. A atual e, pelo menos, sexta intervenção municipal na área recupera a mais tenra de suas identidades: a do encontro social.

Graça e glória são sentimentos que se misturam em visita ao novo velho ponto, sobretudo os dois dedos da prosa fácil que rapidamente se troca com o imortalizado cancionista paraibano Livardo Alves, dois pés de bronze da Torre aquietados no Centro da cidade.

Tão simbólico é o lugar para tanta gente que várias manifestações por toda parte se anunciam. Falas, escritos ou fotografias registram sentimentos de prazer, diante nova conquista, ou de atávico saudosimo do antigo canto.

Há cidades que não crescem. As boas cidades de se viver, contudo, não param. É pura expressão da dinâmica urbana, sua contradição e desafio: a auto-sustentabilidade espacial diante da atração do tempo de oportunidades para o desenvolvimento humano que o crescimento urbano pode gerar.

Alguns lamentam: reclamam o velho lugar. Cantantes das simpáticas paisagens sombrias o repelem: “árido”. E os que vibram, exultam com o ganho urbano. Recompõe-se um largo outrora tão festejado, que bem pode favorecer à humana boca o bendizer.

A aridez verbalizada tem raiz na origem da forma da cidade. Desde a mais singela das referências citadinas, a clássica ágora romana, desenhos e modelos de configurações urbanas foram desenvolvidos em busca da essência da morfologia social. O medieval período das trevas investigou formas e tamanhos ideais de cidade que buscavam induzir à potencialidade de reconhecimento mútuo de seus próprios habitantes. O mero estranhamento do outro era a lógica advogada à reprodução de uma nova urbe, dali bem distante. Uma regra que a cidade moderna não consolidou face ao desafio maior da remota comunicação global, entre eles o desenvolvimento dos meios de transportes e a fluidez que a urgência da vida demandou ao tráfego de veículos, curvando passeios públicos aos conflitos da diversidade da circulação viária.

Talvez a ágora romana seja a primeira tipologia de espaço urbano desenhada para cumprir o papel posteriormente dado às praças. No contexto das cidades, em que se inseriam suas reproduções, aspecto simbológico da cultura local era a materialização de uma idéia de público. Lugar de partilha coletiva, claramente delineado: espaço de praticação democrática, locus, por excelência, da discussão e do debate de idéias entre concidadãos.

Por isso, a perenidade da velha praça “seca” se faz tão viável aos tempos das cidades. E não conflita com a grande demanda por arborização que a Mãe Terra demanda. Teatro urbano para as manifestações do vigor civil que o futuro requisita. Espaço festivo da irmanação de rua que as artes e a cultura podem florescer à firmação da identidade e da auto-estima de um lugar.

O novo velho largo de Cem Réis é a primeira ágora que agora João Pessoa tem: a comuna, a praça cívica que impõe um saudável aprendizado da urbanidade. O lugar de baixo, franco túnel ao transeunte sobre rodas. O de cima, o povo, sobe! Salva andarilhos, ávidos pelo estar público e por passeios que suportem sua intensa marcha e busca da felicidade da vida melhor. Garante passagem às motoristas do tempo e rejeita a cidade virtual, em que as comunicações e circunstâncias da vida contemporânea, submetidas ao avanço tecnológico informacional, tentam inclusive prescindir da essência das trocas da vida e do trabalho: cara a cara, o olho no olho.

O instante pede fé na co-responsabilização social que a cidade se empenha em promover. De políticas públicas de ativação da cidadania, com os poderosos instrumentos de gestão municipal ofertados à sociedade, ao lugar que viceja o encontro cívico.

É impossível parar o tempo que reconfigura o espaço. É necessário reconhecer que a sociedade produz continuamente fortes concorrentes às formas tradicionais e saudosistas dos encontros em espaços abertos, livres, públicos. “A cidade não pára, a cidade só cresce”. E a vida da gente flui reinventando os lugares do passado. A memória da cidade não pára, a memória da cidade só cresce!
Microfísica do cotidiano


O interesse na vida coletiva tem sido acometido, já há algum tempo, por uma desmotivação quase generalizada. Vê-se em curso no país, ao longo das últimas três décadas, uma apatia manifesta sobretudo na ação de organismos representativos dos diversos segmentos sociais.
À realidade social se soma, contudo, a partir do mesmo período, um desenvolvimento individual de exercícios de cidadania.

A Constituição de 1988, adulta que já é, revirou em 180 graus o conceito de controle social estabelecido historicamente e o designou norma magna. À medida que se alastra uma aparente reordenação das representações do corpo social, um crescente exercício de cidadania individual media ausências de manifestações organizadas.

Pessoas integradas à sua própria realidade desejam saber como essa se processa. A atenção às vias de sua concretização cotidiana reveste-se naturalmente de exercícios de poder. Antes, viver em si é poder. A começar das condições de dignidade e cidadania em meio ao qual se insere.
Parecer haver um senso comum prevalecente que ainda crê que o poder se exerce apenas através de atribuição delegada formalmente; para o que parece escapar a percepção de sua inerência à ação humana em todas as escalas de inserção ativa na sociedade. No ambiente privado. No ambiente público. Na escola, em casa, no trabalho e, inclusive, no lazer. Michel Foucault celebrizou isto em Microfísica do poder.

A busca de partilha de debates como este envolve o poder que se exerce nas escalas da individualidade. Manifestações muito mais vigorosas do que comumente se reconhece.

O debate público na Paraíba de hoje frutifica dessa escala de graduação do poder das instituições sociais. E se configura, sem dúvida, expressivo de visões de mundo e de mentalidades que imperam na realidade presente.

A estrutura de comunicação social que desenha o debate público na Paraíba hoje, parece empenhar-se, no mais das vezes, em desenhos de conjeturas sobre o que se aproxima para o comando dos rumos do Estado. Tentativas de exercícios de adivinhação do futuro substituem reflexões essenciais sobre caminhos para o desenvolvimento sócio, econômico e cultural e a sustentabilidade de planos e de gestões que objetivem a promoção desta caminhada.

Muito já se fala, embora modesta ainda seja a trajetória coletiva, acerca da sustentabilidade ambiental; entretanto, exercícios recentes de pensamento endossam demandas antigas da sociedade pela sustentabilidade administrativa como essência para qualquer outra busca de sustentação.

Sentimentos pessoais, desprezados comumente, entranham-se com princípios que norteiam a gestão pública e impõem-se vigorosamente maquiados sobre o debate público. A impessoalidade tão advogada carece de viabilidade. Por trás da agente pública, a pessoa pública. Por trás da pessoa pública, a pessoa.

Uma profusão de temas invade a mente e demanda reflexão. Uma manifesta disposição pela e para a transformação da sociedade aguça os sentidos para os invisíveis desígnios da subjetividade. Embora ainda infante o pensamento que vislumbra o impacto do ser na ação social, não é difícil acreditar que, a exemplo das manifestações de poder, o processo de transformação social dá realdade histórica a fatos instantâneos e fugidios e apela à atenção pública à necessidade de exercícios de transformação pessoal na microfísica do cotidiano.

A transformação social impõe a transformação individual. Resta saber que indivíduos realmente
se dispõem a ela.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Cidades tagarelas... ou que mudas permanecem. A sociabilidade observada nas ruas de Goitia

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Rossana Honorato
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Edifica-se a casa para se estar nela; funda-se a cidade para se sair de casa e reunir-se com outrosque também saíram de suas casas”Fernando Chueca Goitia, Breve História do Urbanismo
Na plenitude de seus atributos, as cidades são insubstituíveis. Pode viver-se fora delas, mas sempre contando com elas, abertas ou fechadas...
Valores como esses ilustram as convicções de Goitia em sua investigação sobre as origens das formas de cidades e os modelos de civilização a que deram vida e conduziram a complexa trajetória da humanidade à urbanidade de nossos dias. Como faz isso, é o que pretendo agora demonstrar, elegendo quatro das dez lições de seu livro Breve História do Urbanismo (Lisboa: Editorial Presença, 1982), em que desfila no pano da história tipos fundamentais de cidade e especula anotações sobre suas manifestações na antiguidade, no medievo e na atualidade.
Impressionado com a “mais compreensível das obras do homem” (citando Walt Whitman, 1982:07), é na tarefa da definição do termo que o autor reconhece uma primeira dificuldade. Em busca deste esclarecimento, presta atenção à forma com que as cidades do tempo deixaram marcas no espaço, e relacionaram o morar e os espaços públicos, e consolidaram ou não a existência e o funcionamento de ruas.
Para isso Goitia dirige o seu olhar para o modo de vida nas cidades, caracterizando-o segundo essenciais traços físicos decorrentes e as recíprocas interpenetrações culturais que engendraram, como arquivo da história, como palco da presença ativa de pessoas. Deixando inclusive que vislumbremos o seu profundo descontentamento com o lugar conquistado pelo insaciável monstro desintegrador da vida de rua da cidade contemporânea: o automóvel.
Uma série de abordagens distintas atrai o pensamento do curioso investigador sobre as possibilidades de estudar-se a cidade: a da história, que encontra amparo no trabalho de Spengler, certo de que a história universal é história de cidades; a da geografia, conforme defende Vidal La Blanche a preeminência da natureza sobre o homem, que nela apenas organiza necessidades e desejos; a da economia, em que Pirenne sustenta a inexistência de civilizações que promoveram a vida das cidades sem a vigência do comércio e da indústria; a da política, contextualizada por Aristóteles como uma conjunção de um certo número de cidadãos; a da sociedade, como símbolo de relações sociais integradas, conforme concebida nos preceitos de Munford; e a da arte e da arquitetura, em que Alberti amarrou a grandeza da arquitetura à cidade cujos muros de proteção externassem a solidez de suas instituições.
Para o autor, entre todas, fica explícito o valor que agrega à urbe ao papel fundamental da praça, corroborando a cidade clássica de Ortega & Gasset, nascida de um instinto oposto ao doméstico, por pontuar a rua, o lado de fora, como o local para conversa, ágora, discurso, eloqüência, política: “em rigor, a urbe clássica não devia ter casas, mas apenas as fachadas necessárias para delimitar uma praça... (Ortega e Gasset apud Goitia, 1982:9). E assim, contrapondo vida doméstica e vida civil – cidades domésticas e cidades públicas, Goitia reclama a carência de estudos que banhem de luz a cidade de dentro das portas mediante aquela do lado de fora. Enquanto encarece um apelo à essência definitiva da praça para a vida da cidade, chega a afirmar que a sua inexistência em um aglomerado urbano retira dele a condição de chamar-se cidade, associando a identificação do termo à presença de vida exterior e civil.
Para ele, emerge em significância a loquacidade da cidade: a cidade grande sala de reunião e sede da tertúlia em que se constituiu a ágora conversadeira e promotora da vida citadina, cujo arrefecimento funcional fez igualmente declinar o exercício da cidadania. Daí a ênfase que dá à questão da sociabilidade, aquela capacidade individual ou de grupos à interação social, cujas características formais do espaço podem ou não impulsioná-la.
Para pensar as cidades caladas e aquelas que falam, o autor destaca três tipos de cidade: a cidade pública do mundo clássico – a civitas romana, a cidade doméstica e campesina da civilização nórdica e a cidade privada e religiosa do Islão.
A cidade antiga, precedendo a técnica industrial posterior – como a do império romano que já herdara da grega os sistemas de instalação de esgoto, de aquedutos, de água corrente, os balneários, os pavimentos, os mercados etc. –, ofertou às cidades contemporâneas a contribuição mais importante para o traçado urbano que se consolidou na memória contemporânea.
A aparentemente insípida cidade islâmica preconizada pela cidade-casa, cidade lá dentro, cidade-santuário, tem a plenitude da vida privada atormentada pelo próprio muçulmano, dividido entre o harém e a vida ‘de relação’ que configuram a fisionomia aparente da cidade lá fora. Compreensível fica a importância não dada à rua e à praça da cidade muçulmana – esta última, ‘restrita’ exclusivamente ao pátio da mesquita, espaço religioso para meditação e passivo deleite do tempo que flui, flui, sem parecer causar vexame.
A família da cidade muçulmana é a organização de dentro para fora, da casa para a rua, em oposição à cidade ocidental, em que se qeneralizou o contrário: a rua traçada condicionando a ocupação das casas. Na cidade muçulmana, a casa prevaleceu e obrigou a ‘rua’ à acomodação tortuosa, à intimidade labiríntica, becos sem saída. Estrutura que, inadequadamente nominada para Goitia, justifica o caráter decisivo de seus véus – as portas da cidade. Intrigante configuração, entretanto, pouca atenção mereceu de historiadores da cidade.
A cidade espanhola transparece uma intensa conciliação: a urbe latina, loquaz, dialética e o hermetismo do harém da sociedade islâmica, cujo modelo barroco deu forma a que o autor chama de cidade-convento.
O que provoca a inquietude de Goitia são as questões que indagam o caráter da vida pública para a definição de cidade, visto a sua ausência em alguma delas. Ele busca um conceito que englobe espécies tão diferentes, sobretudo mediante a presença de aglomerações humanas que não constituem cidades, como as das regiões primitivas ou as do interior da África atual ou aquelas da China posterior.
Recorre a Splenger outra vez para corroborar a tese de uma alma da cidade, um verdadeiro milagre que subitamente faça emergir a espiritualidade geral da cultura, uma alma coletiva de nova espécie, “cujos fundamentos últimos permanecerão para nós envoltos em eterno mistério” (1982:15). Uma alma que uma vez desperta forma um corpo visível que vive, respira, cresce, adquire um rosto peculiar, um idioma de formas de história intensa que dá curso ao ciclo vital de uma cultura. Para assim pensar o problema da cidade que a primeira era industrial engendrou, consolidando publica e universalmente seu termo à cidade mais insensata, mais sem alma e mais desintegradora de que somos partícipes, cuja expressão formal engata a racionalidade da quadrícula e alia o símbolo de progresso ao amontoado de gente num lugar que se designa por um nome próprio para mero efeito de correspondência. O que na Grécia antiga representou um triunfo do racionalismo, em Roma e na América do Sul do século XIX converteu-se no principal instrumento dos especuladores de terreno (1982:18).
Sem esquecer as vantagens e possibilidades trazidas pelos novos meios de telecomunicação emergidos da indústria, mas contra a corrente desintegradora da cidade contemporânea, o autor continua acreditando nos locais de reunião pública, nas praças, nos passeios, nos cafés, nos cassinos populares, que são para ele o que fomenta o livre encontro, a livre conversa, fundamentais ao desenvolvimento da valorizada cidade-alma. Por isso reclama uma atenção à reconstrução dos órgãos públicos de uma cidade.
São algumas das questões refletidas pelo arquiteto, historiador da arte, professor e apreciador de palavras Fernando Chueca Goitia para tratar a história de rua: cidades de dentro das portas e cidades de fora das portas; cidade de fachadas, cidade de interiores, cidades sem alma, civilizações sem cidades, insensatas cidades figurando um idioma de imagens em nosso olhar, reclamando ao presente a ágora de agora – um órgão da sensibilidade pública – para gerar vigorosas cidades do lado de fora dos muros.

Exercício apresentado à Disciplina História da forma urbana, período 2004, 1º semestre, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE – CAC – PPGDU, ministrada pelo arquiteto e professor doutor Geraldo Gomes.