terça-feira, 24 de novembro de 2009


Escuta cultural


Para ouvir basta abrir os poros (...)
Quem ousaria Dessas vozes duvida
(A primeira pedra, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Arnaldo Antunes)
Reabertura do Banguê. A avant-première que assalta o olho sensível é a Praça do Povo: quatro ou cinco carros acostam ao lado da rampa de subida ao cinema.
Observação registrada, rampa em escalada, outra acontecência: murmúrios revelam a curtição da pipoca com guaraná e resvalam a lugar conhecido: “_ pôxa! Quanto tempo já? É sempre assim. Esquecem o principal”.
O principal é o som, impossível de reter a platéia para o fim a que foi chamada.
A companhia do grupo conduz a outro plano. Repassagem pelos carros enfileirados. Diante de seus guardiães, a gente pára e pergunta, já querendo municiar-se para alertar à presidência da Fundação: “_ Por gentileza, de quem são esses carros?” E escuta a justificativa de bocas de santa plausibilidade: “_ é do governador e de sua segurança”.
Irrequieta como sempre, impossível não emitir a mensagem: “_ Digam ao governador pra prestar atenção à praça, que é do povo”. Nada assim que exija nenhum esforço cognitivo superior ao do senso comum.
Motivo de aperreio social desde seu nascedouro, agonizante em busca de sustentabilidade administrativa e financeira, aos galopes o Espaço da Cultura se transforma em qualquer coisa que lhe garanta a sobrevivência. Intrínseca expressão soberba da cultura da gente.
Por qualquer das frentes que se entra, o primeiro apelo visual da cultura é mercadológico. Comércio de roupas e outros estímulos ao consumo desenfreado se vão incorporando à complexa cultura da economia mundial que rouba avassaladoramente espaços de alimento da alma e gera uma profusão de nichos que dão comida ao corpo faminto de sentido e de identidade.
Como estacionamento privativo virou a mais rentável mercadoria das cidades contemporâneas, a gente precavê o espírito ante o choque de ver a cultura do Espaço sustentada por um “parque” de exposições de veículos.
Já não é curioso que, na história do país, gestores como a gente cheguem a carecer de instrução e desconheçam mesmo a razoável aplicabilidade pública da técnica e da ciência, mas a mínima educação doméstica e a sabedoria popular pregam há milênios que o exemplo é o melhor dos instrumentos de formação de valores de uma sociedade.
Pipoca, guaraná, pompa e tudo o mais: carros estacionados do lado da tela para assistir o cinema... que não é mudo, mas é ruidoso. Quem ousar duvidar das vozes ali presentes, basta abrir os poros. Abrir os poros para aprender a escutar.